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segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Língua portuguesa: a língua solta

Enquanto você lê esta frase, o idioma se tranforma - e nada pode ser feito contra isso. Portanto, relaxe e conheça os fascinantes mecanismos que mantêm a linguagem viva.

por Marcos Nogueira
Você fala direito? Aposto que sim. Mas aposto também que, no calor de uma conversa animada, você já se flagrou engolindo o “r” de um verbo no modo infinitivo. A letra “s”, quando indica plural, costuma ser devorada nas rodas mais finas de bate-papo – especialmente em São Paulo. Já os mineiros (até os doutores!) traçam sem piedade o “d” que compõe o gerúndio. No país todo, come-se às toneladas o primeiro “a” da preposição “para”. A primeira sílaba de todas as formas do verbo “estar”, então, essa já é uma iguaria difícil de achar. Portanto, poucos se espantam ao ouvir uma frase assim:
– Num vô consegui durmi purquê os cara tão tocano muito alto.
Isso é errado?
Depende. Se os seus olhos quase saltaram da órbita ao fitar a frase acima, leia em voz alta para perceber que ela não soa tão absurda. Expressões como “tocano” e “vô consegui” atentam contra a norma-padrão da língua portuguesa -– ensinada na escola para preservar um código comum a todos os falantes do idioma. Do ponto de vista da lingüística, entretanto, elas são só objetos de estudo. Retratam fielmente aquilo que o português brasileiro é hoje. E fornecem pistas sobre o que a língua padronizada pode vir a ser daqui a 10, 100 ou 1 000 anos.
“Um biólogo nunca diria que uma bactéria está errada”, afirma o lingüista Ronald Beline, da USP. A lingüística -– ciência que estuda a linguagem assim como a biologia se ocupa dos seres vivos – tampouco pode dizer se uma palavra está certa ou errada. De certo modo, a linguagem também é um organismo vivo. Elementos lingüísticos, como células, nascem e morrem o tempo todo, modificando o sistema. Em todos os idiomas, palavras se alongam, encurtam e trocam de significado; expressões são criadas enquanto outras perdem a razão de existir; substantivos, verbos, adjetivos e advérbios emprestam sentido uns aos outros.
Embora a lingüística esteja longe de ser uma ciência exata, ela já foi capaz de identificar regras mais ou menos fixas no comportamento errático da linguagem verbal. Os mecanismos que regem essas metamorfoses são analisados no livro The Unfolding of Language (“O Desdobramento da Linguagem”, sem tradução para o português), uma das poucas obras digeríveis para quem não é familiarizado com o tema nem com o jargão de quem o estuda. Segundo seu autor, o israelense Guy Deutscher, a linguagem é “um recife de metáforas mortas”. Mergulhemos então para explorar esse recife.
A pré-história da língua
Um recife de corais abriga incontáveis criaturas que vivem sobre uma estrutura fóssil. As camadas internas um dia já estiveram vivas; as externas fatalmente serão reduzidas a matéria inerte e sustentarão as próximas gerações de corais. Na linguagem, esse suporte é dado por metáforas gastas, cujos significados se perderam com o uso ao longo dos tempos.
Em grego moderno, metáfora significa transporte – os caminhões de mudanças de Atenas têm a palavra metafores pintada no baú. No mundo das letras, significa atribuir a uma palavra um significado que não lhe pertencia originalmente. Esse movimento se dá em um único sentido: do concreto para o abstrato. Em alguns casos, as metáforas são evidentes – quando alguém diz que vai mergulhar em um assunto qualquer (que tal lingüística?), ninguém presume que a atividade envolva pé-de-pato e máscara. Outros casos são mais sutis, embora igualmente identificáveis. A palavra “fonte”, enquanto mantém seu sentido primário -– nascente de água –, o amplia para designar a origem de qualquer coisa. Posso garantir que nenhum jornalista concebe a imagem mental de águas termais quando se refere a suas fontes (de informação).
Seminovas ou usadas, essas metáforas ainda estão vivas. As mortas – o sustentáculo do “recife” da linguagem – são aquelas que, de tanto serem usadas para definir outra coisa, perderam a identidade primordial. Os exemplos abundam: “decidir” (do latim de-caedere, “cortar fora”), “rival” (do latim rivalis, “que compartilha – e acaba competindo por – uma mesma margem do rio”), sarcástico (do grego sarkastikós, que significa literalmente “aquele que dilacera a carne”), insinuar (derivado do latim sinus, “curva”). Transfiguradas em elementos meramente gramaticais, palavras como essas são blocos que podem ser agrupados de um jeito ou de outro nas estruturas dos edifícios lingüísticos – só para empregar outra metáfora meio gastinha.
Para chegar aonde tudo começou, só investigando essas estruturas. A recorrência do latim nos exemplos do parágrafo acima não é casual – ela aponta o caminho para a arqueologia do português. Assim como o espanhol, o francês, o romeno, o italiano, o provençal, o catalão e o galego, ele pertence ao ramo das línguas românicas, filhas do latim. A pesquisa dos lingüistas descobriu dados que unem todas essas línguas a outros ramos, como o germânico (inglês, alemão), o balto-eslavo (polonês, russo) e até mesmo o indo-iraniano (hindi, persa). Todos convergem para o proto-indo-europeu (veja infográfico na pág. ao lado), idioma que não pode ser reconstruído com exatidão pelo simples fato de não ter possuído escrita. Estamos falando de uma época em torno do ano 4000 a.C. Mais ou menos no mesmo período, existia o proto-semítico, germe do ramo lingüístico que inclui o árabe e o hebraico (veja infográfico na pág. seguinte). E em todo o planeta havia povos que falavam famílias inteiras de idiomas já plenamente estruturados. Mas... e antes disso?
O lingüista Guy Deutscher diz que só é possível reconstruir o desenvolvimento da linguagem a partir de um estágio em que já havia algumas palavras. Segundo ele, qualquer palpite sobre como murmúrios se tornaram sons articulados e dotados de significado seria especulação leviana. Guy propõe um modelo que – ele mesmo admite – é ultra-simplificado, para que a essência seja transmitida a leigos como eu e você. “Eu sugiro que apenas 3 grupos são matéria-prima suficiente”, diz. “Palavras para coisas físicas (tais quais partes do corpo, animais e objetos), palavras para ações simples (como atirar, correr, comer) e um terceiro grupo consistindo das palavras indicadoras ‘isto’, ‘isso’, ‘lá’ e ‘cá’.”
Como uma coisa tão precária poderia evoluir para a sofisticação da linguagem? Uma resposta possível é a metáfora. Grosso modo, as coisas do mundo físico adquirem sentido figurado e, à medida que as palavras se distanciam do significado concreto, formam partículas auxiliares que enriquecem as estruturas gramaticais. Palavras referentes à língua, à garganta ou à boca ganham o significado de fala. Na falta de um termo próprio para arrancar o couro de um animal, usa-se aquele pelo qual se chama a pele: assim nascem verbos como “pelar”. Na contramão, uma palavra de ação se transforma em substantivo abstrato: “correr” dá origem a “corrida”; “caçar”, a “caçada”; e assim por diante. Como rochas são duras, o vocábulo que designa “pedra” pode vir também a simbolizar a qualidade de “duro”. Que, por analogia, passa a significar “difícil”. Pronomes, como “eu” e “ela”, nascem das tais palavras indicadoras – em última análise, convenções para distinguir o próximo do distante, o familiar do estranho, o meu do seu.
Como a linguagem muda
Um dos mitos mais poderosos da nossa civilização é a queda da torre de Babel. Segundo narra a Bíblia, todos falam a mesma língua e vivem em harmonia até que o homem – em flagrante desafio a Deus – resolve erigir uma torre alta o bastante para atingir o céu. O Todo-Poderoso pune a insubordinação destruindo o edifício e, pior que isso, fazendo com que os povos falem línguas diferentes.
O mito espelha o caráter indômito da linguagem: ainda que um dia a humanidade houvesse compartilhado o mesmo idioma, a manutenção de tal situação seria impossível. Mas de onde vem essa natureza incontrolável? Se não há linguagem sem a mente, é de lá que saem muitas das pressões que fazem uma língua se transformar constantemente.
Pessoas gostam de ser ouvidas. Para que sua mensagem chegue ao receptor, elas capricham no discurso. No esforço para prender a atenção do outro, os exageros são comuns. Quem nunca falou de uma colisão de carros como um “desastre”? Pois é, a primeira definição dessa palavra no Dicionário Aurélio é “acontecimento calamitoso”. Mas há uma segunda: “acidente”. Quando a palavra estiver gasta e não comover mais ninguém, é possível que se busque uma metáfora mais forte para descrever tropeções e cortes no barbear – “catástrofe”, talvez.
Segundo Guy Deutscher, outro fator atuante nas mudanças lingüísticas é a tendência de economizar esforço ao falar. Assim, “vossa mercê” se transformou em “vosmecê”, depois em “você” (em partes do Brasil, já se ouve “ocê” ou simplesmente “cê”). Isolada, essa tendência transformaria a língua em um punhado de monossílabos. Mas a busca pela expressividade compensa essa erosão, diz Guy. No afã de ter um discurso exuberante, as pessoas agregam elementos a essas pequenas palavras, resultando de novo em vocábulos mais longos. O autor usa como exemplo a palavra francesa aujourd’hui, que significa “hoje” – mas, desmembrada em seus componentes latinos já moídos pelo tempo, quer dizer “no dia deste dia”.
É claro que as pressões sociais também têm seu papel nas transformações da língua. “Nós seguimos o padrão de fala do grupo com que nos identificamos”, afirma Ana Müller, coordenadora de pós-graduação em lingüística na USP. Grupos influentes, geralmente jovens que ditam a moda e o comportamento, também podem fazer as vezes de farol lingüístico. Guy Deutscher narra como o beatle George Harrison inovou o léxico inglês. No filme Os Reis do Iê-iê-iê (1964), ele pronunciou a expressão inventada grotty, abreviação de grotesque (“grotesco”), que no ato se tornou gíria corrente. A juventude da década seguinte, que ignorava o episódio do filme, deduziu que grotty deveria seguir uma fórmula usada na formação de muitos adjetivos daquela língua – “substantivo + y”, como em dirty (“sujo”, de dirt, “excremento” ou “ terra”) e hairy (“cabeludo”, de hair, “cabelo” ). Assim nascia o substantivo grot, que veio a significar “porcaria”.
Como toda mudança na língua fere a gramática, os zeladores da norma culta sempre vão tentar impedir que elas atinjam a oficialidade. Mas as transformações iletradas aproveitam as brechas das gerações para se infiltrar. “A mudança ocorre quando a criança adquire a língua”, diz Ana. Seguem-se a aceitação dos jovens letrados e influentes, o uso corrente na imprensa e, por fim, a assimilação pelos dicionários e gramáticas.
Um tipo de mutação lingüística preocupa em especial os conservadores: o intercâmbio de palavras e expressões, tão comum quanto malvisto. O lingüista David Crystal, da Universidade de Gales em Bangor (Reino Unido), é um defensor dos estrangeirismos. “Empréstimos sempre acrescentam valor semântico”, diz. Para exemplificar, ele demonstra que a palavra “real” (de “rei”) pode ser dita de 3 modos em inglês: kingly (origem germânica), royal (francesa) e regal (latina). A língua inglesa, grande ameaça dos idiomas indefesos, tem 80% de seu vocabulário emprestado do latim, do francês ou do grego.
O declínio começou?
Limpar a reputação das palavras alienígenas é uma missão inglória. Em 1999, o atual presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, apresentou um projeto de lei que tornaria obrigatório o uso do idioma português em espaços públicos e vetava estrangeirismos como “delivery”, “mouse” ou “deletar”. Se desse certo, até o nosso football poderia estar em risco. Mas tal absurdo teria chance zero de funcionar, mesmo com medida provisória ou decreto imperial.
Do mesmo modo que as transformações da linguagem são naturais e incontroláveis, a resistência a elas é um tipo de conservadorismo que parece inevitável. Se você acha que seu sobrinho escreve de um jeito esquisito nos chats da internet, lembre-se de que seu pai implicava com as suas gírias e que seu avô não deveria engolir muito bem aquela coisa de “broto legal” e “é uma brasa, mora”. “Quem resiste às mudanças são as pessoas que têm o poder de ser ouvidas”, afirma Ana Müller, da USP. Essas pessoas geralmente já atingiram a maturidade física e intelectual – têm entre 40 e 50 anos –, dominam a norma culta da língua e ocupam posição social confortável. A idealização da própria juventude, sintoma comum em quem não absorve mais inovações, é um fenômeno universal e atemporal.
Em 1946, o escritor inglês George Orwell tinha 43 anos e estava prestes a lançar o clássico A Revolução dos Bichos. Foi quando ele escreveu na revista literária Horizon: “A maioria das pessoas que se preocupam o mínimo com o assunto admitiria que o inglês está no mau caminho”. Isso em comparação com as vias virtuosas do passado. Já em 1780, um certo Thomas Sheridan reclamava do estado do inglês de sua época, e dizia que, sob o cetro da rainha Anne (1702 a 1714), os súditos encontravam a língua “em seu mais alto estado de perfeição”. Pois Jonathan Swift, autor de As Aventuras de Gulliver, dizia em 1712 que a coisa não ia bem. Quer mais? Até o latim clássico, quimera da pureza lingüística para uns tantos, era alvo de críticas. Em um volume sobre a arte da oratória datado de 46 a.C., o estadista e intelectual Marco Túlio Cícero examinava um discurso escrito um século antes e concluía: seus contemporâneos não sabiam mais falar.
O fato é que, nos vastos domínios dos romanos, quase ninguém mesmo falava o latim clássico de almofadinhas como Cícero. A língua corrente nas camadas inferiores da população era o latim vulgar, que nem sequer tinha uma gramática escrita. Foi esse latim vulgar que, com o esfacelamento do império, se transformou no francês, no italiano, no espanhol e no português. E por que uma dispersão lingüística desse gênero não ocorreu em territórios tão grandes quanto o Brasil ou os EUA? “Contato é o ponto crucial dessa questão”, diz Guy Deutscher. “Na Europa medieval, quase todo vilarejo tinha seu próprio dialeto e as pessoas que moravam a 100 quilômetros de distância umas das outras mal se entendiam. Acontece que quase ninguém viajava 100 quilômetros naquela época”. Por si só, o fato de os portugueses terem chegado ao Brasil atesta que a mobilidade já era bem maior naqueles tempos.
Se contato é uma questão-chave nas mudanças da linguagem, será que estamos vivendo uma época peculiar – já que pessoas viajam de avião e palavras, pela internet? Para o galês David Crystal, sim. O nome de seu livro mais recente, A Revolução da Linguagem, diz muito sobre a opinião do autor. Segundo ele, a tal revolução está apoiada em um tripé: o inglês como língua universal, a internet e a extinção em massa de línguas. Desses, apenas o último não é objeto de controvérsia. Mais da metade das cerca de 6 mil línguas existentes no planeta estão ameaçadas. A maioria, por restringir-se a áreas remotas (como alguns rincões do Brasil), nem foi registrada por escrito.
As duas outras assertivas dão pano para manga. David afirma que nunca uma língua teve alcance tão amplo quanto o inglês de hoje – nem o latim, que era desconhecido em zonas afastadas do Império Romano – e que os efeitos disso são imprevisíveis. De acordo com Ronald Beline, da USP, a extensão territorial do domínio inglês não importa tanto. “Para quem vivia na área de influência de Roma, aquilo era o mundo conhecido”, diz.
E a internet? David Crystal afirma que os chats, e-mails e as páginas da web não se enquadram nos padrões da comunicação escrita, muito menos da linguagem falada. O mundo até presenciou o nascimento de um código ortográfico comum a internautas de várias línguas, o netspeak, que economiza o máximo nas letras para acelerar a digitação. Para David, tudo isso é uma novidade comparável à invenção da imprensa. Ana Müller discorda: “Como em todas as áreas, as mudanças estão acontecendo mais rápido, só isso”. Guy Deutscher dá de ombros: “É certo que o discurso da internet se coloca entre o escrito e o falado”, diz. “Mas, para lingüistas, ‘linguagem’ significa primariamente a língua falada. Essa não foi mudada radicalmente pela internet.” Kem vc axa q tah certu?

Revista Superinteressante -Edição 225 - abril/2006


 

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